Ordenações – atos emanados do poder
executivo através dos quais, na Península Ibérica medieval, eram promulgadas
normas, decisões e outras medidas destinadas a regulamentar os mais diferentes
assuntos. Ou coletâneas de preceitos ou códigos oficiais referentes,
predominantemente, ao direito português e espanhol (AZEVEDO, Antônio Carlos do
Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. RJ: Nova Fronteira,
1990. P. 291. In LAGES, 2011. P. 270-271).
Portugal promulgou três ordenações: as Afonsinas, as Manuelinas e as
Filipinas. O
principal objetivo dessas ordenações era criar uma ordem jurídica própria, não
mais dependente da legislação espanhola [de Castela]. Essa necessidade
tornou-se mais intensa com a Revolução de Avis (1383-1385), que foi uma crise
de sucessão ao trono português, em que Castela reivindicou direitos de ocupar o
trono e, consequentemente, anexar Portugal a Espanha. João, filho bastardo de
D. Pedro I com Teresa Lourenço, uma mulher do povo, mestre da ordem de Avis,
ascendeu ao trono com o apoio da burguesia mercantil.
Com D. João I iniciaram-se a
compilação das leis, resoluções régias, petições, etc. que já existiam e
formaram as ordenações, que só foram concluídas em 1446, no reinado de D.
Afonso V, daí ficarem conhecidas como Afonsinas.
Estas ordenações expressam a preocupação em fortalecer o Estado, na pessoa do
rei, e diminuir e acabar com as várias leis dispersas pelo reino, que chegavam
a concorrer entre si. Composta por cinco livros; apenas o quinto é decretório
ou legislativo, porque não se apoia em nenhuma fonte, e é o que aborda o
direito e o processo penal. O primeiro se refere aos cargos públicos; o segundo
sobre o Direito Eclesiástico, donatários, nobreza, mouros e judeus; o terceiro
era sobre o processo civil; e o quarto sobre o direito civil.
Com as Ordenações Afonsinas a
estrutura judiciária estabeleceu-se da seguinte maneira: magistrados
singulares, magistrados específicos e tribunais colegiados de segundo e
terceiro graus de jurisdição.
Magistrados singulares eram: os Juízes Ordinários – bacharéis em Direito eleitos pela Câmara
Municipal; os Juízes de Fora – bacharéis
em Direito nomeados pelo Rei, possíveis substitutos dos Juízes Ordinários; os Juízes de Órfãos – cuidavam dos
interesses referentes a menores, inventários e tutorias; os Juízes de Vintena – juízes de paz a
serviço de comunidades com até vinte famílias; os Almotacéis – apreciavam litígios sobre servidão urbana e crimes praticados
por funcionários corruptos; os Juízes de
Sesmaria – sobre questão de terras; e os Juízes de Alvazis dos avençais e dos Judeus – que deviam resolver
questões entre funcionários régios e judeus.
Os Tribunais Colegiados de Segundo
Grau eram compostos pelo: Desembargo
do Paço – onde se apreciavam questões cíveis sobre liberdade dos indivíduos,
como graça, perdão, indulto, privilégios etc; o Conselho da Fazenda – tratava de litígios sobre a arrecadação de
tributos; e a Mesa de Consciência e
Ordem – que apreciava os recursos dos demais juízes.
O Tribunal Colegiado de 3º Grau
era a Casa de Suplicação, que era a
última instância da Justiça com competência delimitada.
O rei ocupava o mais alto cargo da
Justiça. Ele era o
governador da Casa da Justiça na Corte. Era o rei que definia os dias de
trabalho e distribuía os Desembargadores, Juízes dos Feitos, Procuradores, Corregedores
da Corte e Ouvidores.
Os Juízes dos Feitos realizava audiências nos Tribunais de Relação e
nas Mesas de Consciência. O Corregedor da Corte examinava contas dos Concelhos,
Albergarias, Juízes de Órfãos etc, e podia atender a demandas de pessoas menos
afortunadas, como também expedir cartas de prisão e livramento. Acompanhava a
Corte, assim, era também responsável por suas atividades administrativas.
Os Ouvidores deviam conhecer
todos os feitos penais em processo de apelação, e zelavam pela distribuição de audiências
nos Tribunais de Relação, e administravam a condução dos serviços forenses.
O Direito Canônico muito influenciou
as Ordenações Afonsinas, a ponto de a palavra pecado substituir a palavra
crime. Dessa maneira, não se avaliava apenas o crime em si, a materialidade do
crime, mas as intenções do acusado; e, nesse sentido, se graduava a pena. A
mentalidade jurídica da época, portanto, não trabalhava com a proporcionalidade
entre delito e pena. A lei tinha a função de incutir o medo; o temor era
justificado pela pena prevista. Diversos delitos sofriam punição idêntica: a
pena de morte.
Outro aspecto importante a observar é
que não havia de ideia de igualdade, de equidade. As penas e o tratamento
variavam de acordo com a origem social, e de gênero, do acusado.
Em 1505, o rei D. Manuel, chamado o “Venturoso”,
mandou revisar as Ordenações Afonsinas. Após cinquenta nove anos, o reino de
Portugal estava em plena expansão marítima e mercantilista; vivia uma
modernidade, uma nova mentalidade que exigia mais agilidade nos negócios e na
vida social. Muitas leis já estavam em desuso; muitas leis extravagantes,
nesses quase sessenta anos, tinham sido produzidas, e era preciso superar, até
mesmo, a linguagem rebuscada e de influencia castelhana das Ordenações
Afonsinas.
Surgiram então, em 1521, as Ordenações Manuelinas. Uma legislação
que foi beneficiada pela invenção da imprensa (1450), o que a tornou mais
conhecida e com maior poder de alcance; auxiliando, assim, a centralização do
poder real, do Estado Moderno Português. As alterações empreendidas nas ordenações,
nessa revisão, foram mais no sentido da forma – em estilo decretório: a redação
em decretos - e com o acréscimo de algumas novas normas que tratavam, especialmente:
de relações comerciais – inclusive com estrangeiros; e de direito marítimo. Nos
demais assuntos, pouca coisa mudou; continuando na mesma sistemática de lançar
mão do Direito Romano quando algo não estava previsto pelas ordenações.
No período do reinado de D. Manuel, o
rei exigia a formação acadêmica de Direito para aqueles que trabalhavam com a
Justiça; todos os Juízes de Fora deveriam ser advogados formados.
Com o tempo novas leis surgiram
revogando ou esclarecendo as ordenações, e a reforma da Universidade de Coimbra
em 1537 “gerou um afã legislativo muito grande” (Lages, 2011; p.279). Este
processo acabou criando uma dispersão, que dificultava a operacionalidade da
legislação. Diante dessas dificuldades uma nova compilação foi encomendada pelo
regente D. Henrique em 1569. Essa legislação ficou conhecida como de D. Duarte Nunes
Leão - o responsável pela compilação - ou Código
Sebastianico, porque D. Sebastião era o príncipe herdeiro ainda menor para
ocupar o trono na época.
Em 1571 D. Sebastião, aos catorze
anos, assumia o trono português. Educado por jesuítas, Sebastião desejava ser
um herói das Cruzadas, e, nesse sentido, em 1578, seguiu liderando dezoito mil
homens para África, para lutar contra os infiéis muçulmanos; perdeu a batalha
de Alcácer-Quibir, no norte da África. Foi dado como morto, mas o seu corpo
nunca foi encontrado.
Um rei sem herdeiros. Portugal entra
em crise de sucessão dinástica. Seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, assumiu o
trono, mas morreu sem herdeiros. Extinguiu-se a dinastia de Avis.
Apesar de haver “candidatos” ao trono,
Filipe II, rei da Espanha, neto de
D. Manuel e supremo chefe de uma das maiores forças militares da época assume o
trono português. E tem início o período da União
Ibérica.
Mas, essa união não foi completa;
Portugal ainda manteve certa autonomia e defesa de seus interesses. As Cortes Portuguesas
impuseram condições e apresentaram exigências ao novo rei – o Juramento de Tomar (1581): permissão
para que o comércio colonial de Portugal fosse com navios portugueses,
comandados por portugueses, e as autoridades espanholas não poderiam se
intrometer nos assuntos das colônias portuguesas; os cargos, as leis, os costumes,
e o idioma português, como língua oficial, seriam preservados.
O desejo de centralização do poder
real, e dos juristas em impor o direito romano, assim como repelir a influência
canônica foram enumerados como os motivos que levaram Filipe II a empreender uma
nova revisão nas Ordenações Portuguesas. Assim, em 1603 era promulgada a Ordenação Filipina, o documento
jurídico que mais tempo ficou em vigor tanto em Portugal quanto no Brasil.
A Ordenação Filipina é uma
compilação, que revisa um pouco as normas da Ordenação Manuelina; sendo uma de suas
principais fontes o Código Sebastiânico. Houve mais uma reforma com base nas
ordenações anteriores, poucas novidades foram inseridas, o caráter português
foi preservado. A alteração mais importante está na composição da estrutura
judiciária, que se tornou mais complexa, o que acompanhava a complexidade da
vida socioeconômica e política da época.
A quantidade e a especificidade de
juízes e tribunais se ampliaram. Os Juízes Singulares eram: o Juiz das Casas da Índia, Mina, Guiné,
Brasil e Armazéns – questões ultramarinas de arrecadação fiscal, com
recurso aos Desembargadores dos Agravos da Casa de Suplicação; o Ouvidor da Alfândega da cidade de Lisboa
– apreciava feitos cíveis entre mercadores, e cíveis e criminais com
envolvimento de funcionários de postos importantes; o Chanceler das Sentenças – responsável pelo selo das sentenças e
cartas expedidas por outros juízes singulares; o Corregedor da Comarca – quem vigiava os membros da Justiça,
apreciava os agravos; eventualmente, substituía os Juizes de Fora; e tinha a competência
de conhecer causas em que uma das partes fosse juiz, alcaide, fidalgo, tabelião,
abade e prior; o Ouvidor da Comarca –
mesmas funções do Corregedor, mas contra seus atos caberia agravo para o
Corregedor, era nomeador por Carta Régia e tinha mandato de três anos; o Juiz Ordinário – anualmente eleito
entre os “homens bons” nas Câmaras Municipais tratava de causas cíveis,
criminais e competência subsidiária das causas pertencentes ao Juiz de Órfãos,
suas decisões só poderiam ser impugnadas por meio de julgamento de recurso no
Tribunal de Relação do munícipio de sua alçada; o Juiz de Fora – sua competência alcançava causas cíveis de até 600
réis em bens móveis e 400 réis em bens imóveis, mas também atuavam substituindo
os Juízes Ordinários no caso de causas cíveis com valor até mil réis em bens
móveis e em lugares de até 200 casas; o Juiz
de Vintena atuavam em lugares distantes uma ou mais léguas de uma vila ou
cidade, de vinte a cinquenta casas, eleito entre os “homens bons”, apreciava
questões de até 100 réis, tinha o poder de decretar prisões, porém, deveria comunicar
ao Juiz Ordinário; os Almotáceis, além
das competências já estabelecidas pelas ordenações anteriores, julgavam as
coimas (multas para proprietários de animais que pastam em lugar indevido), e
despachavam nos recursos de agravo e apelação para fins de processamento; o Juiz de Órfãos continuava com as mesmas
competências; o Juiz de Sesmaria
também continuava com a mesma função, apreciava as demandas sobre medição e
demarcação de sesmarias e era escolhido pela Mesa do Desembargo do Paço ou
pelos governadores; e, por fim, o Inquiridor,
aquele que tomava o depoimento das testemunhas.
A Casa de Suplicação e o Tribunal
de Relação formavam a segunda jurisdição, sendo que cada qual cuidava de
uma parte do país.
Desembargadores do Paço, Conselho da
Coroa e Fazenda, a Mesa de Consciência e Ordem e o Chanceler da Suplicação
formavam a Casa de Suplicação. Os corregedores e ouvidores exerciam funções nos Tribunais
de Relação de segundo grau.
A Casa de Suplicação presidida pelo
Regedor e composta pelo Chanceler Mor e pelos Desembargadores exercia o
terceiro grau de jurisdição. O Regedor conduzia as atividades judiciais dos desembargadores
das mesas, e seu voto tinha o poder do desempate em qualquer decisão. O
Chanceler Mor inspecionava os documentos públicos e extrajudiciais, cuidava dos
juramentos e tomada de posse dos cargos dos oficiais do Império. Os
Desembargadores divididos em grupos de dez apreciavam os agravos e apelações.
As Ordenações Filipinas elencam uma
lista de casos e situações de crime que devem ser recebidos em processo, mas
essa lista não é organizada por temática, ou assunto; indica desde questões
diversas de relações sexuais consideradas ilícitas, problemas com judeus e
mouros, crimes políticos a fugas de cadeia etc. O resultado dos processos, no
entanto, era recomendado que devessem ser rápidos e “segundo a verdade” apurada
por provas testemunhais, na falta de provas ou “por outro algum respeito
jurídico” a pena ordinária era substituída, por exemplo, por degredo e
impossibilidade de exercer o mesmo ofício. Não podiam testemunhar: pais, mães,
avós, avôs, filhos, netos, bisnetos, irmãos, escravos, judeus, mouros, “o desasisado
[que está livre] sem memória” e os menores de catorze anos.
O falso testemunho, e os que induzissem
ou corrompessem testemunhas eram condenados a morte e perda de todos os bens,
caso o processo tenha se resultado em pena de morte a um inocente; se não
tivesse havido morte seria degredado para o Brasil.
Degredos para outros lugares e
açoites eram aplicados a crimes mais leves. Morte e degredo para o Brasil eram
penas aplicadas nos crimes mais graves.
O Livro Quinto das Ordenações
Filipinas é o que
trata sobre a matéria e o processo penal. Este livro chama a atenção pela diversidade
dos delitos enumerados e crueldade das sentenças e penalidades. Não há proporção
entre delito e pena, assim como o tratamento é diferenciado entre nobres
fidalgos – considerados “gente de mais qualidade” - e plebeus, escravos,
mouros, judeus e mulheres. Os nobres e pessoas formadas em Universidade não
sofriam os tormentos, tidos como vergonhosos. A pena de morte poderia ser
executada de quatro formas, precedidas, geralmente, por dolorosos
suplícios. O vivicombúrio – queimar o
indivíduo vivo - era o mais indicado pela ordenação, aplicado, por exemplo, no
crime de incesto. A morte atroz significava
ainda o confisco de bens, a queima do cadáver, o esquartejamento e a abolição de
sua memória, caso aplicado a tabeliães e escrivães que fizeram escrituras falsas.
A morte natural era por degola ou enforcamento.
A forca, como era considerada uma morte infame, era aplicada nas pessoas de mais
baixa camada social. E tinha a “morte
civil”, considerada a mais cruel: o individuo mesmo vivo não tinha direito
algum, como se não existisse; em alguns casos, o culpado sofria a morte cruel e
os filhos herdavam a morte civil.
Nos casos de crime de Lesa-Majestade,
aleivosia (traição, fraude), falsidade, moeda falsa, testemunho falso,
feitiçaria, sodomia, alcovitaria, furto não gozavam de privilégio algum os
fidalgos, cavaleiros ou doutores, mas sofriam as tormentas e punições como
qualquer um do povo.
Em menores de dezessete anos, homem ou mulher, não se aplicava a pena
de morte, que seria trocada por outra menor a critério do Julgador. De
dezessete a vinte anos ficava a cargo de o julgador decidir se aplicava a pena
de morte ou não. E de vinte anos em diante se aplica a pena como se passasse de
vinte e cinco.
A Ordenação Filipina foi válida no
Brasil, no que ainda não tinha sido revogado, até durante o Império, e só foi
plenamente substituída em 1916, com a promulgação do Código Civil Brasileiro.
Houve algumas tentativas de reformulação motivadas pelo desenvolvimento do
conhecimento e da mentalidade jurídica liberal, especialmente influenciada pelo
discurso do jurista italiano Cesare Beccaria, que culminou com a obra “Dos
Delitos e das Penas” em meados do século XVIII, bem como pelos ideais
iluministas de Voltaire, Rousseau e Montesquieu, então em voga. Mas, não houve
sucesso nessas tentativas de reformulação; o projeto de Código Criminal do professor
José de Melo Freire dos Reis da Universidade de Coimbra foi rejeitado.
Principal referência bibliográfica: LAGES,
Flávia. História do Direito. Geral e Brasil, RJ: Editora Lumen Juris, 2011.